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Ele é português e é o único Pai Natal certificado na Península Ibérica

Carlos Rocha tem 62 anos e veste o fato vermelho há 45. Formou-se na Escola de Pais Natais nos EUA, onde até teve que fazer um juramento.
É Pai Natal há quase 50 anos.

Não consigo bater o Marcelo Rebelo de Sousa em selfies, mas em fotografias bato-o à vontade”, explica Carlos Rocha. Numa primeira leitura, a comparação com o Presidente da República poderá soar a arrogância, mas quem o diz é um profissional com quase meio século de experiência e currículo como antigo professor universitário (tal como Rebelo de Sousa, curiosamente), que vestiu o fato de Pai Natal pela primeira vez há 45 anos, quase por acaso. 

“Uso barba desde os 17 e, um dia, uma amiga perguntou-me se não queria ir lá a casa fazer de Pai Natal para o sobrinho e disse que sim. A partir daí nunca mais parei: tinha muitos amigos em jardins de infância que começaram a pedir-me também. Na altura, punha pó na barba [risos], porque ainda não estava grisalha, graças a Deus”, recorda.  

Já perdeu a conta aos miúdos que cumprimentou, deu colo e ofereceu presentes. “Milhares… faço isto há muitos anos. E fotografias outras tantas, mas selfies menos.” Atualmente com 62 anos, não consegue precisar com exatidão a data nem o valor do primeiro cachê. “Mas ainda tínhamos o escudo”, assegura.

Em 2012, motivado pela curiosidade e desejo de aprofundar a sua missão, tornou-se no “único Pai Natal certificado da Península Ibérica”. Um título pomposo que acrescentou ao seu longo currículo académico: educador de infância, licenciado em expressões artísticas na educação, doutorado em ciências da educação. “Sempre trabalhei nesta área, formei educadores de infância, professores de primeiro ciclo, animadores sócio-culturais”, explica. Reformado há dois anos, Carlos Rocha era professor universitário e lecionou em várias instituições, como na Universidade de Aveiro e no Instituto Europeu de Estudos Superiores.

A formação académica acabou por se revelar uma mais-valia quando decidiu estudar na Charles W. Howard Santa Claus School, nos EUA, —  a primeira e mais antiga escola do género em funcionamento contínuo no mundo. “Como fazia de Pai Natal achei que devia saber de onde vinha, como era realmente. Decidi pesquisar, porque o Pai Natal não é uma criação da Coca-Cola. E foi nesse processo que me cruzei com a escola, que foi fundada em 1937.”

Um estudioso do Natal

Carlos Rocha não pretende destruir as ilusões que muitos tomam por verdadeiras, mas também não evita a franqueza. Outro mito que se apressa a desfazer pode derreter os sonhos de quem sempre imaginou o “White Christmas”, como no filme de Bing Crosby de 1954. “O Pai Natal não é da Lapónia, isso foi um aproveitamento bem agarrado, mas que  também ajuda a promover a figura”, atira.

A pesquisa recuou até ao Império Romano e a um dos primeiros cristãos, São Nicolau. “O santo que mais tarde deu nascimento ao Pai Natal, era da [atual] Turquia, foi bispo de Mira. Era o único filho de uma família abastada, e seguiu os passos do tio que também tinha sido bispo de Mira. Quando os pais morreram herdou uma grande fortuna, que decidiu usar para ajudar os mais carenciados, mas sempre de uma forma discreta. Sem se identificar”, revela. 

Em torno desta generosidade existem imensas lendas, “a que alguns chamam milagres”, mas nada está documentado, sublinha. “O que se sabe é que ajudou imensa gente, principalmente quem estava ligado aos mais novos, por isso, o São Nicolau é o patrono dos miúdos.” A contextualização histórica é importante, refere, porque a certificação como Pai Natal implica fazer um juramento, baseado nos “princípios que norteavam a vida de São Nicolau: a solidariedade, a amizade, a igualdade, a paz”.

Quando formalizou a sua candidatura à escola, dado o seu extenso currículo na área da educação, acabou por obter equivalências às matérias teóricas. “Mais tarde mandaram-me o juramento que tive de fazer em Portugal, na presença de 30 e tal pessoas.  É um texto que temos de dizer, com os princípios que referi, e que tem de ser dito na presença de observadores — que têm também de assinar um documento, para comprovar que o juramento foi feito segundo os princípios que constam do mesmo.”

Questionado como os resumiria numa frase, o antigo professor não hesitou: “promover a alegria dos miúdos, o bem-estar, o sentido de partilha: é isso que nos orienta”.

O look

Ao contrário do que poderíamos pensar, além do juramento, a certificação não está associada a um determinado aspeto ou outfit.  Isso não é o mais importante. Até porque o Pai Natal nem sequer é parecido com o [verdadeiro] São Nicolau. A figura que hoje identificamos como Pai Natal é, de facto, muito semelhante à criação da Coca-Cola”, reconhece.

A principal responsabilidade de quem faz o juramento, não é ter barba branca nem vestir um fato vermelho. “É trazer aos miúdos o mundo mágico do Natal, para que lhes dê alegria e os torne pessoas melhores no futuro — é isso que nos é exigido em termos do nosso trabalho.”

Embora não seja imprescindível, Carlos Rocha reconhece que a sua longa barba branca e a farda feita à medida fazem toda a diferença. “Nada é padronizado dentro do estereótipo daquilo que é o Pai Natal”, frisa.

O fato em veludo foi imaginado por Carlos Rocha.

A minha barba é natural, o que, às vezes, por questões de saúde, nem sempre dá muito jeito. É tudo verdadeiro, nada é falso. O meu casaco é inspirado no gabão, muito usado na região de Aveiro. Parte das minhas camisas são feitas em Viana do Castelo, artesanalmente, por uma senhora de lá. As minhas botas são feitas por um sapateiro alentejano, que as faz para mim, à medida.”

O design da farda foi inteiramente imaginado por si, e “depois foi um alfaiate que fez, claro”. Até os acessórios foram pensados ao detalhe. “Tenho as insígnias de todas as associações a que pertenço no colete e na capa, uma chave mágica que abre todas as portas do mundo na noite de Natal e um gorro com uma estrela lindíssima, que veio do Palácio de Buckingham, em Londres. Tem tudo um toque muito especial”, frisa.

O que é isso de ser Pai Natal?

Atualmente, o Santa Jackas, como também é conhecido, faz sobretudo chegadas do Pai Natal, visitas breves e distribuição de presentes em várias instituições. Por outro lado, as presenças de vários dias a fio em centros comerciais são raras ou mesmo nenhuma.

Já fiz [temporadas em shoppings e mercados], mas já não faço. Estive muitos anos em Óbidos, na Vila Natal. Mais tarde, montei um projeto em Vagos, chamado ‘Natália, a Terra do Pai Natal’. Organizamos o evento durante seis anos e, aí, estava presente todos os dias.” 

Enquanto ator, hobby a que também se dedica desde os 20 anos, não se contenta com o papel secundário. “Não me limito a ser um mero objeto. Violo todas as regras, tenho sempre os organizadores em cima de mim”, admite. A interação com o seu público é algo de que não abdica.

“A única coisa que imponho é a minha forma de estar. Gosto do contacto com a audiência. Não me sento numa cadeira e estou ali a tirar fotografias com um ar zangado. Não. Muitas vezes saio da charrete ou do que for, para me aproximar, cumprimentar os miúdos. Mesmo em Óbidos, tinha sempre uma casinha, mas saía, vinha cá para fora. Percorria as filas, para ver se evitava que estivessem tanto tempo à espera, que era um bocado desagradável para os miúdos.”

Ao longo dos anos acumulou momentos inesquecíveis, tanto por boas como por más razões. Muitas estão relacionadas com a sensação de impotência face a algumas realidades com as quais se cruza com frequência. “Para nós, é fácil gerir os pedidos de presentes. É mais difícil quando nos pedem outras coisas. Como um miúdo que me disse que queria que a mãe saísse do hospital boa, para poder ir trabalhar e voltarem a ter comida. E este é apenas um destes pedidos reais, que não são o último jogo da Nintendo ou o iPhone mais recente”, confessa.   “Quando os miúdos não pedem nada para si próprios, mas para a família, neste caso, as melhoras da mãe, isso é marcante”.

As presenças

Sem indicar valores concretos, explica que continua a fazer muitas visitas “de graça”, sobretudo a instituições, hospitais e escolas. “O dinheiro não é a coisa mais importante na figura do Pai Natal”, frisa. Contudo, reconhece que também faz visitas a cobrar quando se tratam de empresas que têm dinheiro para pagar, “para se poder dedicar a outros projetos”.

Em quase meio século, já percorreu o País de norte a sul e está prestes a estrear-se nos Açores, com uma visita à ilha de Santa Maria, agendada para dia 22 de dezembro. Lisboa, Porto, Santo Tirso, Braga, são apenas algumas das muitas cidades por onde passou. Porém, entre as que ainda lhe faltam visitar, há uma que considera mais significativa.

“Como se costuma dizer ‘em casa de ferreiro, espeto de pau’. Nasci em Lourenço Marques, mas vivo em Ílhavo desde os dois anos e nunca fui convidado para fazer de Pai Natal. E só fiz em Aveiro, a sete quilómetros de Ílhavo, uma vez”, lastima. Apesar deste lamento, não se queixa de falta de trabalho. Afinal, faltam cerca de mil Pais Natais em Portugal, como foi anunciado no final de novembro.

“Essa notícia é perigosa, porque abre caminho a muitos estereótipos e desgraças. Infelizmente, muita gente aproveita esta época para ganhar algum dinheiro, sobretudo em centros comerciais — que pagam mal e precisam das pessoas muito tempo — a os miúdos cruzam-se com imagens medonhas”, comenta.

A boa disposição é uma das suas imagens de marca.

Como aquelas situações em que se vê um Pai Natal à porta do centro comercial, com a barba ao lado, a fumar, ou com ar maldisposto. “Isso não é um bom exemplo para os mais pequenos. O Pai Natal é uma figura que marca, portanto, não se pode ser por ser, tem de ser por vocação”, considera. “Atenção: não é que aquelas pessoas sejam medonhas, mas deixam uma imagem negativa. Não há assim tantas pessoas a fazer de Pai Natal nesta época que também o façam durante o ano inteiro”, enfatiza.

Carlos Rocha destaca Severino Moreira, conhecido como o “Pai Natal do Colombo”, como uma das exceções, ou seja, alguém que veste o fato vermelho como missão. “É uma pessoa por quem tenho muita admiração. É muito bem disposto, muito alegre e tem uma imagem muito próxima da que nós conhecemos do Pai Natal”, — e que, tal como Santa Jackas, também tem uma longa barba natural.

E, afinal, quantos puxões na barba já recebeu? “Raramente um miúdo me puxa a barba”, nota. “Mais depressa um adulto, armado em parvo, desculpe a expressão, faz isso. É mais fácil um miúdo carregar-me na barriga para ver se é verdadeira — infelizmente é, tenho de começar a fazer dieta.”

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