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João Garcia: “Se morresse mais um português da minha equipa, o patrocínio acabava”

O mais famoso alpinista português recorda no novo livro a conquista do K2, o cume mais desafiante do que o próprio Evereste.

Em 2006, João Garcia continuava a gravar o nome no alpinismo português, com conquista atrás de conquista e uma gloriosa ascensão ao Shisha Pangmna, na China. Só que a expedição ficou marcada por uma tragédia.

Bruno Carvalho, de 31 anos, fazia parte da equipa de portugueses que o acompanhava e com quem já tinha subido aos Alpes, aos Andes e aos Himalaias. Uma queda depois de ter atingido o cume e a poucos metros do local onde a restante equipa o esperava, manchou a expedição.

Foi Garcia quem encontrou o corpo do colega que até então, o acompanhou no seu projeto ambicioso, “À Conquista dos Picos do Mundo”, onde ambicionava escalar as 14 montanhas mais altas, acima dos oito mil metros. A experiência foi marcante, para o alpinista e para o seu plano.

“Há uma amargura nesta minha vida de alpinista. Porque não era para ser só eu, mas uma equipa nacional”, conta João Garcia, hoje com 58 anos, sobre a forma como a morte abalou os planos para, no ano seguinte, conquistar o temível K2. A escalada deveria ter acontecido com um grupo português, mas teve que recuar nas intenções.

A morte do colega no Shisha Pangma “foi mal digerida pelo pai”. E o feedback que recebeu foi que “se morresse mais um português” na sua equipa, a imprensa iria transformá-lo “de bestial em besta” e “o patrocínio acabava”. 

São estas e outras histórias que o alpinista revela no seu novo livro que chega às livrarias esta quinta-feira, 23 de outubro, “K2 – A Rainha das Montanhas”. As 192 páginas contam em detalhe o percurso até ao cume de uma das montanhas mais mortíferas do planeta.

Além da escalada, há meses de preparação, o caminho até ao acampamento-base — a primeira grande meta —, o perigo constante, a imprevisibilidade do clima, a presença da morte e até o negócio por detrás desta atividade.

No cume do K2

O livro foi escrito em conjunto com o jornalista Aurélio Faria, de 60 anos, que acompanhou a expedição a partir de um telescópio instalado a cinco mil metros de altitude. “A imagem mais marcante é o regresso do João quando está no cume, a cara de felicidade de quem tinha conseguido alcançar o objetivo”, recorda à NiT.

Conheceram-se em 1994, em Kathmandu, quando Aurélio cobria para a SIC a tentativa de outro português de chegar ao Evereste. Desde então seguiu a carreira de João Garcia, acompanhou o projeto “À Conquista dos Picos do Mundo” e juntou-se à aventura do K2. “Foi o maior desafio da minha vida profissional”, conta.

A ideia do livro surgiu em 2024, por sugestão do próprio alpinista. “Houve muita coisa que ficou por contar na conquista das montanhas dos oito mil metros e esta foi uma delas.” Aurélio recorda ainda que “foi um verão atípico por causa do desaparecimento da Madeleine McCann e dos incêndios, por isso o feito não teve a devida importância” — nem espaço editorial.

As tragédias e uma profissão incompreendida

Em 1999, no Evereste, depois de alcançar o cume, João Garcia e o alpinista belga Pascal Debrouwe ficaram presos pelo mau tempo. Foram forçados a pernoitar na montanha. O belga não sobreviveu. João perdeu os sentidos durante horas e ficou gravemente ferido pelo frio. Teve de ser internado durante três meses e acabaria por perder parte dos dedos das mãos, pés e nariz.

A experiência marcou-o. “Desde aí aprendi que chegar ao cume é só um bónus e que ainda é preciso descer em segurança até ao acampamento-base.”

O acidente também o tornou mais conhecido, mas por razões que nem sempre o confortam. “Sou conhecido, em parte, por isso, e estou convencido que, se tem corrido bem, tinha passado ao lado” da comunicação social. “Tenho sempre este estigma da maneira como esta atividade é interpretada na nossa sociedade.”

João Garcia no Tibete

Com o novo livro, o objetivo é também combater preconceitos. “Queremos derrubar o conceito e a maneira enviesada que existe em Portugal de ver o montanhismo”, diz Aurélio Faria. Muitas vezes, a perceção é a de que um alpinista que corre riscos merece um desfecho trágico. Para o jornalista, João Garcia “acabou por fazer uma travessia solitária e eu diria que as montanhas mais difíceis que subiu foram as do preconceito e da mentalidade.”

Mesmo depois do acidente, João voltou às montanhas. “Desde que ando pelos Himalaias, sempre ouvi que quem escala o Evereste ganha fama mundial, mas só é um alpinista verdadeiro quem alcança o cume do K2.”

Foi o que fez em 2007. Tornou-se o primeiro português a atingir o topo da segunda montanha mais alta do mundo, com 8614 metros, na fronteira entre o Paquistão e a China. A “Montanha das Montanhas”, como é chamada localmente, tem uma taxa de sucesso a rondar os 30 por cento. Escalou-a sem oxigénio artificial, como já tinha feito no Evereste, em 1999, e sem ajuda de sherpas. Concluiu os 14 picos do mundo com mais de oito mil metros em 2010, com o cume do Annapurna.

Muitas destas histórias já foram contadas em livros anteriores. Mas a do K2 ficou guardada até agora. “Eu não quis parar, quis aproveitar o balanço, a inércia, o treino e a idade”, conta à NiT. “Escalei enquanto pude e só depois me sentei à secretária a escrever.”

A linha ténue entre a vida e a morte

Um dos temas mais difíceis é precisamente o de saber lidar com a morte. “Quem tem uma carreira longa como o João, tem a sua quota de companheiros que não voltaram. Isso é transversal a qualquer alpinista de renome no mundo”, sublinha Aurélio Faria.

Para alcançar o cume do K2 e regressar ao acampamento foram 15 a 16 horas de “esforço ininterrupto”, uma prova “arriscada e intensa”, recorda João Garcia. Não raras vezes, há um preço a pagar.

A capa do livro

Na chamada “Zona da Morte”, a mais de oito mil metros, Nima Nurbu Sherpa, um veterano de seis ascensões ao Evereste, escorregou para a morte. “Houve percalços, subimos 16 pessoas e descemos 14 e não é preciso explicar muito mais.”

Para escreverem esta obra, Garcia e Faria revisitaram cassetes com 11 horas de vídeo. Algumas tinham sido gravadas durante a escalada. “Talvez por isso não tivesse bem noção de alguns diálogos pelo rádio e isso reavivou-me a memória”, nota o alpinista. Também consultaram os diários de expedição, todas as notas e até as crónicas publicadas na altura no site da SIC.

Com este material, conseguiram construir descrições que colocam o leitor no coração da montanha. “Há coisas que naturalmente o João não vai falar, mas eu como jornalista vou: as dificuldades, o sofrimento, o poder não sobreviver”, diz Aurélio.

O livro já está disponível, online e nas bancas, por 16,50€.

Carregue na galeria para ver algumas fotografias das expedições de João Garcia.

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