cultura
ROCKWATTLET'S ROCK

cultura

Svetlana Alexievich no Fólio 2025: “Em vez de democratas, a Rússia criou merdocratas”

Escritora foi a grande estrela do primeiro fim de semana do festival. A vencedora do Nobel fez revelações sobre a sua próxima obra.

A intervenção de Svetlana Alexievich no Fólio 2025 dificilmente será esquecida por quem assistiu à sua apresentação, que decorreu este sábado, 11 de outubro, moderada pela jornalista Sara Figueiredo Costa. Dez anos após receber o Nobel da Literatura, em 2015, a 14.ª mulher a receber o prémio —, veio ao Festival Literário Internacional de Óbidos participar numa conversa. A escritora e jornalista, nascida na Ucrânia, revelou como nasceu o seu fascínio por histórias e abordou os falhanços dos anos 1990, na Rússia, após a queda da URSS. Comentou ainda a situação geopolítica atual dos três países, apelidando Aleksandr Lukashenko de “ditador” e Vladimir Putin de “fascista”.

Numa tenda Vila Literária completamente lotada, Svetlana, de 77 anos, explicou que percebeu “muito cedo” que queria ser escritora e dar voz às vidas difíceis que conhecia e àquilo que ouvia à sua volta. Lembrou ainda o peso que as histórias sobre a guerra tiveram no seu crescimento: “Nasci em 1948, logo após a II Guerra Mundial, e na minha vila só viviam mulheres, porque os homens, ou tinham morrido em combate ou ainda estavam mobilizados algures. Ouvia o que as mulheres contavam e ficava encantada, sobretudo porque eram histórias de amor”.

A autora ficou mundialmente conhecida com o projeto literário “Vozes da Utopia”, do qual fazem parte cinco livros que reúnem relatos duros e crus de quem viveu alguns dos períodos negros da experiência soviética, como a II Guerra Mundial, o desastre nuclear de Chernobyl ou a Guerra do Afeganistão. Com esse quinteto de livros – “Vozes de Chernobyl”, “A Guerra não Tem Rosto de Mulher”, “O Fim do Homem Soviético”, “As Últimas Testemunhas” e “Rapazes de Zinco” – desenvolveu um novo género literário, classificado pela crítica literária como “romance de vozes”.

Os meus pais eram professores, e tinha muitos livros em casa, mas o que lia não tinha o impacto que as histórias contadas pelas mulheres da aldeia tinham em mim. Eram senhoras simples, camponesas, mas as suas narrativas eram mais poderosas que muitos livros inteiros”, contou a escritora, que fez a apresentação em russo, acompanhada de uma tradutora para português.

Os seus livros são duros, com relatos sobre a devastação causada pelas guerras e pela opressão soviética e, sobretudo, sobre a morte e a dor da perda. Apesar de sofridos, Svetlana Alexievich defendeu que são também histórias de amor, — e aproveitou para contar uma experiência marcante da sua infância que definiu para si o significado e poder desse sentimento.

Svetlana Alexievich, com a sua tradutora, Helena, e com a moderadora, a jornalista Sara Figueiredo Costa.

“Uma vez, quando tinha 10 anos, fui com os meus pais visitar a minha avó ucraniana. Estávamos no comboio e, perto de mim, estavam dois homens a beber vodka, um deles estava a descrever o seu romance com uma mulher ao outro. Contou todos os pormenores e fiquei fascinada – foi a história mais bonita que já ouvi. A dada altura esse homem disse para o amigo: ‘Quando estiver a morrer só vou lembrar-me de quando bebia vinho do sapato dela’. Nesse momento, percebi o que era o amor”, relatou, arrancando uma salva de palmas da plateia.

O presente da Rússia, Bielorrússia e Ucrânia

Embora tenha falado de modo empático e romântico sobre os seus livros, o tom rapidamente se transformou em corrosivo e frontal, quando abordou a situação atual das nações que compunham a antiga União Soviética. Svetlana culpabiliza a falta de reformas na Rússia nos anos 1990, que deixaram o país à deriva levando a que este fosse tomado por forças do passado.

A Rússia não teve políticos reformadores. Após a queda do comunismo, toda a gente sabia que era tempo de mudança, mas ninguém soube o que fazer. Acabaram por perder a batalha com o passado. Muitas coisas foram destruídas, como universidades e fábricas, a educação deixou de ser gratuita e perdeu-se o respeito pelos trabalhadores. Em vez de democratas, criaram-se merdocratas e o país ficou pior. Só agora é que percebemos que a liberdade é um caminho muito longo e o país ficou muito tempo à deriva. Perdemos muito tempo e as forças do passado aproveitaram, representadas por Vladimir Putin, instaurando um regime próximo ao fascismo”, afirma a escritora.

Svetlana falou ainda do momento atual do seu país, a Bielorrússia, que vive debaixo de uma autocracia, liderada por Aleksandr Lukashenko desde 1994: “Tentámos destituir o ditador em 2020, mas Putin não o permitiu. Desde então, cinco milhões já abandonaram o país – eu incluída, que vivo em Berlim. Além disso, mais de 50 mil pessoas foram presas e condenadas com penas superiores a 10 anos”, acrescentou, deixando um apelo: “Sei que estão num período eleitoral, aqui em Portugal, não deixem que o poder seja entregue aos populistas”.

Abordou ainda a guerra da Ucrânia, que se arrasta desde 2022, defendendo que “é uma vergonha que a Bielorrússia não apoie o povo ucraniano, e que seja um albergue para tanques russos”. Além disso, criticou a União Europeia e os EUA pela demora a prestar apoio militar à Ucrânia, o que fragilizou a sua resposta face ao ocupante.

Para fechar, Svetlana Alexievich destapou o véu sobre o seu próximo livro, intitulado “O Fim do Homem Vermelho”. A obra aborda os “tempos hodiernos” e será lançada em breve, contudo, a data exata não foi revelada. “Os populistas tomaram o poder em muitos países e as democracias estão mais fracas, mas acredito que isso ainda pode mudar. Os ditadores não conseguem vencer o tempo”, rematou.

Carregue na galeria para ver mais imagens da apresentação de Svetlana Alexievich no Fólio 2025.

ARTIGOS RECOMENDADOS