David Lynch morreu na passada quinta-feira, 16 de janeiro, a poucos dias de fazer 79 anos. O cineasta esteve várias vezes em Portugal, mas a visita mais mediática foi em 2007, quando participou no festival de cinema LEFFEST, a 17 de novembro. Além de ter falado sobre o seu trabalho enquanto realizador, deu uma espécie de masterclass sobre meditação transcendental, uma prática aperfeiçoada pelo guru Maharishi Mahesh. Em tempos, a disciplina foi elogiada por nomes como os Beatles, Jerry Seinfeld ou Stevie Wonder.
A meditação transcendental é uma técnica acessível e descomplicada que consiste na repetição silenciosa de um mantra pessoal — uma palavra cuja sonoridade proporciona benefícios psicoativos — permitindo que a mente atinja um estado de relaxamento profundo e consciência ampliada. A prática envolve sessões de 20 minutos, duas vezes ao dia.
Em 2024, Lynch revelou que tinha sido diagnosticado com enfisema pulmonar, resultado de anos a fio como fumador. O cineasta considerava a meditação transcendental uma ferramenta ideal para enfrentar “o mundo violento e turbulento em que vivemos”, explicou no Centro de Congressos do Estoril em 2007, citado pela RTP.
Durante o LEFFEST, encorajou os jovens realizadores portugueses a perseguirem os seus sonhos, mesmo quando a indústria cinematográfica se mostra difícil e implacável. “Sejam fiéis a vocês próprios, não aceitem uma má ideia, mas nunca recusem uma boa ideia”, afirmou, vestido com o seu habitual fato escuro e camisa branca, perante um público de 600 pessoas.
Lisboa foi a 26.ª cidade que visitou em 2007, como parte de uma digressão europeia dedicada à meditação transcendental, uma prática que confessou ter adotado há duas décadas. “Era uma pessoa afetada pela depressão e pela raiva. Com a meditação consegui superar emoções negativas como o medo e a ira, libertei a minha consciência e a criatividade começou a fluir”, disse, na altura, à agência Lusa, o realizador de “Inland Empire”, aqui citada pela RTP.
Durante a sua apresentação no Estoril, Lynch provocou risos na audiência ao comentar que “a depressão e a raiva são atitudes muito comuns, especialmente entre artistas jovens, porque pensam que assim podem conquistar mais mulheres”.
Lynch não considerava o cinema “uma coisa intelectual, mas muito emocional” e sempre ligada à intuição. “É ela que nos ajuda a discernir o que está certo ou errado. Se a nossa mente estiver livre de negatividade, teremos um melhor acesso à intuição”, assegurou, sublinhando que a meditação é, no fundo, uma forma de aceder à intuição.
“Tenho observado uma grande transformação nas escolas onde a meditação está a ser introduzida. Os níveis de violência baixaram e as crianças começam a aprender melhor e a desenvolver o seu potencial”, acrescentou.
No final da sua intervenção, abordou um tema que, decorridos 18 anos, continua na ordem do dia: os conflitos no Médio Oriente. Lynch acreditava que, se fossem colocados cerca de 200 mestres em meditação em Israel, todas as guerras na região chegariam ao fim. “Não apenas em Israel, mas em todo o mundo”, concluiu.
Uma carreira feita de altos e baixos
O cineasta era amplamente reconhecido pela realização da série de televisão “Twin Peaks” e filmes como “Blue Velvet”, “Lost Highway” e “Mulholland Drive”, que combinam elementos de terror, film noir e mistério.
Ao longo da sua trajetória, foi nomeado para quatro Óscares. Recebeu indicações nas categorias de Melhor Realizador por “O Homem Elefante”, “Blue Velvet” e “Mulholland Drive”, além de uma nomeação para Melhor Argumento por “O Homem Elefante”.
Apesar de ter se tornado um dos realizadores mais influentes da história do cinema, a sua trajetória pessoal e profissional foi repleta de altos e baixos. David Lynch nasceu a 20 de janeiro de 1946, na cidade de Missoula, no estado do Montana, EUA. Em 1971, iniciou o trabalho na sua primeira longa-metragem, “Eraserhead”. O filme, que se tornou uma obsessão, levou cinco anos a concluir e pôs fim ao seu casamento com Peggy Lynch.
“Eraserhead” foi finalmente lançado em 1977, mas não fez sucesso, misturando o estilo peculiar de Lynch, que na época era considerado bizarro, com arte em stop-motion. No entanto, a obra chamou a atenção de Mel Brooks, que convidou o realizador para trabalhar em “O Homem Elefante”, um projeto que se revelou um êxito, recebendo oito nomeações aos Óscares e sendo bem acolhido tanto pela crítica quanto pelo público.
Anos mais tarde, em 1984, dirigiu “Duna”, uma adaptação do livro de Frank Herbert, protagonizada por Kyle MacLachlan, com quem colaborou frequentemente. Ao contrário da reinterpretação mais recente, realizada por Denis Villeneuve e com Timothée Chalamet como protagonista, a versão de Lynch foi considerada um fracasso: teve um orçamento de 43 milhões de euros, mas arrecadou apenas 29 milhões.
O desaire levou o cineasta a evitar projetos mais ambiciosos, mas recuperou a confiança em 1986 com “Blue Velvet”, um thriller com elementos de fantasia que lhe rendeu uma nova nomeação ao Óscar de Melhor Realizador. O seu mais recente projeto é “Unrecorded Night”, uma série com 13 episódios, cuja continuidade ainda é incerta.
Quatro casamentos, quatro filhos
David Lynch teve vários relacionamentos ao longo da vida, desde casamentos a envolvimentos mais fugazes com várias atrizes com quem trabalhou. No total, casou-se quatro vezes e tem quatro filhos. O primeiro casamento de Lynch foi com Peggy Reavey, entre 1967 e 1974. Dessa relação nasceu a sua filha Jennifer Lynch, que seguiu os passos do pai na realização e é conhecida pelo filme “Boxing Helen”.
Após o divórcio de Peggy, o realizador envolveu-se com várias mulheres, incluindo Isabella Rossellini, com quem teve um relacionamento mediático nos anos 80. Rossellini, que protagonizou “Blue Velvet”, foi apenas uma das várias atrizes com quem Lynch se envolveu romanticamente. “Vivemos um período maravilhoso juntos, mas as coisas mudam”, disse numa entrevista.
Em 1977, casou-se com Mary Fisk, com quem teve um filho, Austin Jack Lynch. Este envolvimento durou até 1987 e, depois, seguiu-se um casamento com Mary Sweeney, que se tornou produtora de muitos dos seus filmes. Com ela, Lynch teve um filho, Riley Sweeney Lynch, mas o casamento, oficializado em 2006, durou apenas um mês.
Por fim, em 2009, Lynch casou-se com Emily Stofle, atriz que participou em “Inland Empire”. Com ela, teve a sua filha mais nova, Lula Boginia Lynch, nascida em 2012. Apesar das suas várias ligações com atrizes conhecidas, Lynch raramente discutia a sua vida pessoal em profundidade. No entanto, numa entrevista, afirmou que o amor e o trabalho estavam entrelaçados na sua vida. “Às vezes, as coisas funcionam, outras vezes não.”