O Festival Fólio, em Óbidos, recebeu esta sexta-feira, 17 de outubro, uma das presenças mais aguardadas da edição deste ano: John Maxwell Coetzee, o discreto e enigmático escritor sul-africano, vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 2003. Aos 85 anos, Coetzee apresentou-se na tenda Vila Literária para uma conversa com o ensaísta e escritor Alberto Manguel, numa sessão marcada pela contenção, pela lucidez e pela profundidade ética que sempre definiram a sua escrita.
A tenda estava completamente lotada. O público, silencioso, ouvia atentamente cada palavra do autor, que, fiel ao seu estilo, falou pouco mas de forma assertiva. O tema deste ano do Fólio — “Fronteiras” — serviu de ponto de partida para a leitura de um texto de Coetzee que refletiu sobre o conceito de fronteira, não apenas como limite geográfico, mas como uma linha moral e histórica que separa o humano do desumano.
“O convite para Óbidos veio com a indicação do tema: as fronteiras. Estava a colaborar com um colega num livro sobre o genocídio, suscitado pelo genocídio que está a decorrer em Gaza às mãos de Israel”, começou por dizer. “No livro, concentramo-nos nas colónias de África, Austrália e América do Sul. Genocídio é um termo recente, criado para definir o projeto do Terceiro Reich de aniquilação do povo judeu da Europa. Perguntámo-nos se seria anacrónico aplicá-lo a eventos do século XVIII e XIX e concordámos que não. O termo faz sentido para esses eventos.”
Coetzee, que ao longo da sua carreira tem abordado as feridas do colonialismo, do racismo e da violência institucional, traçou paralelos entre os genocídios modernos e os massacres cometidos nos processos de colonização: “Em todos os séculos houve populações a serem atacadas como se fossem vermes”, e acrescenta: “Não tenho motivos para pensar que sou uma pessoa melhor do que os meus antecessores cristãos que os mataram. Quando falo destes homens da fronteira, estou a olhar para um hiato inultrapassável. Não consigo entendê-los nem perdoá-los.”

Coetzee evocou também o discurso inaugural de Donald Trump, comparando-o ao texto do historiador Frederick Jackson Turner, que em 1893 definiu a expansão para o oeste americano como “uma marcha de progresso”. “O facto de quem escreveu o discurso de Trump ter recorrido a Turner mostra que o espírito deste está bem vivo”, disse. “Trump afirmou: ‘Os nossos antepassados transformaram um pequeno grupo de colónias numa poderosa nação.’ Como a população ameríndia terá recebido estas palavras?”
Num tom crítico, Coetzee falou ainda da glorificação da colonização americana através do cinema: “Os ameríndios estão ausentes da historiografia americana, tal como do discurso de Trump. Hollywood absorveu estas teorias e dramatizou-as para consumo público. No meu país, a África do Sul, os meus ancestrais também cometeram várias atrocidades no processo de colonização. Contudo, não temos uma Hollywood para mitificar esses horrores.”
O público ouviu-o em silêncio. Coetzee concluiu a sua leitura com uma reflexão sobre o conceito de fronteira: “O carácter que define a fronteira é a ausência de lei. Para Turner, viver numa zona do mundo sem lei torna-nos fortes e independentes. Mas penso que viver fora da lei só traz o pior das pessoas.”
Durante a curta conversa com Alberto Manguel, o autor de “Desgraça”, “À Espera dos Bárbaros” e “A Vida e o Tempo de Michael K”, manteve o tom sóbrio, com respostas sucintas. Questionado sobre as novas narrativas políticas de desinformação, como a ideia de “genocídio branco” promovida pelo atual presidente dos EUA relativamente à África do Sul, Coetzee respondeu com ironia seca: “Trump está sob a influência de Elon Musk e, honestamente, este tipo de coisas são humor negro para mim. Não vou comentar esse tipo de coisa.”

Para fechar a sessão, o sul-africano, agora residente na Austrália, foi ainda questionado sobre o papel dos escritores, como ele, que ousam desmitificar a história de um ponto de vista ético e foi, mais uma vez, modesto e direto: “Penso que o contributo dos escritores para a história do pensamento político é claramente sobrevalorizado.”
Apesar da sua reserva, o legado de Coetzee fala por si. Nascido em Cidade do Cabo em 1940, formou-se em Matemática e Literatura Inglesa, tendo obtido o doutoramento pela Universidade do Texas com uma tese sobre Samuel Beckett. Viveu e lecionou nos Estados Unidos, no Reino Unido e, desde 2002, reside na Austrália. É ainda um dos quatro autores a ter vencido o Booker Prize duas vezes.
J. M. Coetzee foi o segundo Nobel da Literatura a visitar a tenda Vila Literária do Fólio 2025. Depois de Svetlana Alexievich ter passado por lá no sábado passado, o próximo será László Krasznahorkai, no domingo, às 17 horas. O romancista húngaro foi o galardoado deste ano, tendo a Academia Sueca anunciado o seu nome precisamente no dia em que arrancou o Festival Literário Internacional de Óbidos.
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