Piadas sobre sexo, pessoas trans e até niqabs têm sido contadas, por estes dias, no palco do Festival de Comédia de Riade, capital da Arábia Saudita, conhecido pelas suas leis extremamente conservadoras e repressivas e por um governo autoritário regularmente acusado de violar os direitos humanos. Apesar de todo esse currículo negro, decidiu promover o primeiro festival internacional de comédia no país, que decorre até 9 de outubro, com várias estrelas planetárias.
Naturalmente, nada disto aconteceu sem uma boa dose de polémica, sobretudo pelos nomes que aceitaram fazer parte do evento. Inclusivamente o sempre controverso Dave Chappelle, que há três anos fazia manchetes devido a uma piada e dizia à imprensa: “Quanto mais vezes dizem que não posso dizer algo, mais urgente é que eu o diga.”
O cartaz conta com outras estrelas como Kevin Hart, Bill Burr, Jack Whitehall, Jimmy Carr e Louis CK. Mas o que era para ser um marco histórico no entretenimento saudita tornou-se rapidamente num campo minado de críticas, acusações e arrependimentos públicos.
Os espetáculos têm sido descritos como surpreendentes por quem vive no país. Houve espaço para falar sobre sexo, homossexualidade (que ainda punível com pena de morte no país) e até sobre símbolos culturais como o niqab (véu utilizado por algumas mulheres muçulmanas que cobre o rosto, deixando apenas os olhos visíveis). “Nunca vi nada assim na Arábia Saudita”, confessou uma espectadora citada pela BBC. “As pessoas estavam a rir-se, até as mulheres sauditas à minha frente.”
Apesar do elenco cheio de estrelas, muitos recusaram o convite para participar. É que sob a aparente abertura e liberdade de fazer piadas, escondem-se, alegadamente, diversas cláusulas contratuais que ditam o que os comediantes podem ou não dizer em palco, isto é, que Carr, CK e Chappelle terão aceitado condicionar os seus sets para poderem participar.
A comediante Atsuko Okatsuka partilhou excertos de um contrato que referia a proibição de qualquer referência negativa ao governo ou à religião, algo que, segundo várias fontes, terá sido imposto a todos os artistas. Jessica Kirson, uma das poucas mulheres no cartaz e a única comediante abertamente lésbica, acabou por pedir desculpa publicamente por ter aceitado o convite. Apesar de ter falado sobre a sua identidade em palco e de ter recebido uma ovação, Kirson disse estar arrependida e anunciou que doará o seu cachet a uma organização de direitos humanos.
Outros, como Louis CK, defenderam a decisão de atuar. “Houve coisas boas e más, mas para mim, foi uma oportunidade. Não posso falar da religião nem do governo, mas isso não me impediu de fazer stand-up como gosto.”
Bill Burr também partilhou a mesma visão, dizendo que foi “uma das melhores experiências da carreira”. “O público queria isto. Riram, aplaudiram. Há uma vontade real de ver comédia a sério”, afirmou no seu podcast. Mas há quem veja a coisa de forma mais cínica. Marc Maron e David Cross acusaram os colegas de se venderem a um regime autoritário. “Não podem queixar-se de censura nos EUA e depois ir atuar num país onde há zero liberdade de expressão”, escreveu Cross, dirigindo-se diretamente a CK.
Os valores pagos às estrelas também impulsionaram as críticas. Fala-se de cachés na casa dos 375 mil euros por atuação, com alguns nomes a receberem ainda mais. O comediante Tim Dillon admitiu que só aceitou por causa do dinheiro e terá acabado por ver a sua participação cancelada, alegadamente por causa de piadas antigas onde falava sobre o uso de mão de obra escrava por parte das monarquias islâmicas.
O evento é financiado por entidades estatais sauditas, como a General Entertainment Authority e a empresa Sela, pertencente ao fundo soberano do país. Para muitos, esta ligação direta ao governo transforma o festival em apenas mais um instrumento de branqueamento, numa tentativa de limpar a imagem de um regime que continua a reprimir (e, no caso de Jamal Khashoggi, a matar) jornalistas, mulheres e comunidades LGBTQ+.

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