Assume não ter “pretensões de mudar o Fado”, mas avança “sem medo de experimentar” ou até de retocar e desafiar “a natureza polida” do género e dos temas que lhe servem de fundação. Foi isso que Carminho fez quando agarrou o tema “Eu Vou Morrer de Amor ou Resistir”, de Carlos Barrela, que promoveu também ao título do seu novo disco, editado esta sexta-feira, 10 de outubro.
O sétimo disco da fadista de 40 anos tem um título que parece uma pergunta, mas que pode muito bem ser uma afirmação e parte de um verso que a própria encontrou numa herança invulgar: uma caixa deixada por Beatriz da Conceição, uma das grandes figuras do Fado, que morreu em 2015. “Foi um presente que ela me deixou”, conta Carminho.
Dentro da caixa, vieram fotografias, manuscritos e poemas. Alguns clássicos conhecidos, como “Canoas do Tejo”. Outros, inéditos. “Encantou-me [este tema do Carlos Barrela] exatamente por este carisma um pouco irónico da letra e ambíguo, que contraria a natureza polida da temática do fado, que vive muito deste fatalismo de morrer de amor. Morre-se muito de amor no Fado. É um tema que nunca vai sair de moda, mas a possibilidade de resistir, de não nos deixarmos prostrar nesse lugar, também é algo que me interessa.”
Este jogo entre o inevitável e o possível, entre o fado como destino e o fado como ferramenta, está presente ao longo de todo o disco. E mesmo quando o universo sonoro é inesperado, a base mantém-se firme. “Estou sempre a trabalhar sobre o Fado tradicional. Para mim o Fado é um instrumento, uma ferramenta do pensamento de um fadista, é uma língua que está viva e que está em constante construção.”
O tema de avanço, “Balada do País Que Dói”, nasceu da leitura de um poema de Ana Hatherly, mas começou por ser parte de uma peça conjunta feita com João Pimenta Gomes para a inauguração do Museu de Arte Contemporânea do CCB. “A peça não tinha estes contornos todos. Eu quis desdobrar a canção para o meu disco”, explica. Nesse processo, foi acrescentando instrumentos, texturas, novas dimensões.
A ideia da experimentação acompanha-a há vários anos. “O Fado pratica-se muito a ouvir os outros e depois a tentar repetir, trocar as letras, procurar novas melodias. É um trabalho bastante tradicional, mas também bastante natural.” Ainda assim, há um cuidado evidente em como se mexe no género. “Não tenho pretensões de mudar o Fado. Também não tenho medo de experimentar. Acho que estou a trabalhar o Fado sobre as premissas que conheço bem.” Essa confiança, diz, vem de anos de escuta, de palco e de estúdio, da consciência de que o Fado, como qualquer expressão viva, evolui: “Precisa sair de um lugar de exercício de memória. Eu vou-me nutrindo do passado para construir aquilo que quero dizer agora.”
No novo disco, essa construção inclui elementos inesperados. “Procuro lugares sónicos novos. O vocoder [sintetizador de voz] veio trazer esta ideia de múltiplas vozes. Existem experiências que, na escuta do álbum, se vão percebendo e eu estou feliz com isso. Não sinto medo, nem foi uma tentativa de arriscar. É só o processo em estúdio. É aquilo que eu gosto. Sem medo”
Essa abertura é também temática e traz com ela uma série de reflexões. “Há temas que o fado trabalhou muito e que me parecem um pouco desatualizados, alguns até no limite do que é hoje em dia um discurso possível. Estou a falar também de algum machismo em algumas letras”, explica, antes de apontar a palavras caídas em desuso, que vai aos poucos modificando e levando até novos caminhos.
“Não sei até que ponto alguém da nova geração sabe o que é um ardina (…) é importante passar o testemunho, mas também é importante falar sobre o que é contemporâneo de cada um dos artistas. O nosso tempo tem muito tema para abordar.”

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