O saber popular diz que, se atirarmos um prato ao chão e colarmos novamente os cacos, a peça nunca voltará a ser como antes. Metáforas à parte, Filipa Correia descobriu, algures em 2021, que a peça quebrada pode, na verdade, ficar ainda melhor. Foi nesse ano que se cruzou com uma nova paixão.
O kintsugi — ou emenda de ouro — é uma arte japonesa que consiste em reparar uma peça de cerâmica partida com remendos de resina misturada com pó de ouro, prata ou platina. Inspirada na beleza da imperfeição, a técnica realça as fissuras para passar uma mensagem: todas as coisas têm valor, independentemente das suas quebras ou defeitos.
Após vários anos a trabalhar em conservação e restauro, a jovem de 28 anos virou-se para este conceito durante a tese de mestrado, em Design para a Sustentabilidade, na Faculdade de Belas Artes em Lisboa. “Estava a estudar psicologia da cerâmica e descobri que muitos materiais acabam em enterros sanitários, porque não há um sistema de reciclagem”, conta a responsável.
Filipa começou a colecionar peças quebradas que encontrava nas ruas e lojas da capital. “Sempre fui apaixonada por técnicas artísticas, então tornei-me autodidata”, acrescenta a artista. “Virei-me para vários tipos de manuais, livros e tutoriais no YouTube focados na técnica.”
O que começou por ser um projeto pessoal tornou-se num serviço. Na Junta Cacos, um estúdio no Porto, transforma fragmentos de cerâmica em peças únicas e funcionais, evitando que acabem no lixo. E todos podem aprender através dos workshops onde ensina o essencial acerca desta filosofia.
O projeto, afirma, “cria uma conexão entre o design e o restauro” que surge da inspiração em técnicas com o trencadis, uma espécie de mosaico com pedaços irregulares, ou terrazzo, um revestimento que une agregados de diversas pedras. A mistura entre o artesanato tradicional e movimentos de arte contemporânea reflete-se na estética lúdica e eclética das peças.
No seu trabalho e nas oficinas, a fundadora foca-se na versão moderna do kintsugi, com formas mais abstratas e experimentação com diferentes tipos de materiais. “O método original é do século XV e é feita com materiais que podem ser muito caros, como pó de ouro real. São resinas que demoram, pelo menos, um mês a secar.”
Filipa começou por usar polpa de papel, para juntar os cacos, até que percebeu que não ficava muito estável. Foi então que passou a usar uma resina à base de água por ser mais ecológica e durável. Desde o início, o segredo foi adaptar a escolha dos materiais ao objetivo. “Não podem ser muito químicos, nem pouco duráveis.”
No caso da resina com água, tem a vantagem de poder ser desfeita novamente. A artista coloca um verniz para a criação ficar impermeável, mas pode tirar para demolir a peça toda. Assim, se ficar esquecida ou deixar de servir algum propósito, pode fazer-se uma nova com os mesmos fragmentos.
O projeto foi crescendo “de forma orgânica” e as pessoas começaram a entrar em contacto nas redes sociais, interessadas nesta arte. Não demorou muito tempo até que vários ateliers procurassem Filipa para organizar as primeiras oficinas, no Porto. “É muito valioso ter esta experiência de partilhar o que sei cara a cara.”
Dos workshops aos kits
O número mínimo de alunos para cada oficina é de cinco e a turma não pode ultrapassar as 10 pessoas, para que haja o acompanhamento necessário. A apresentação começa com uma introdução à história e filosofia desta técnica, antes dos participantes aprenderem os passos principais.
Normalmente, Filipa recolhe as peças partidas de fábricas e ateliês, que quebram durante o transporte ou armazenamento, para levar para as aulas. Porém, também convida os interessados a levarem artigos (que devem ter entre três a quatro cacos) com os quais têm uma ligação emocional.
As histórias acumulam-se. Filipa recorda-se, por exemplo, de uma senhora que levou um vaso oferecido pelo marido e que partiu durante uma viagem. Já em dezembro, organizou um workshop com uma associação de apoio a familiares de vítimas de doenças oncológicas. Uma senhora optou por levar um prato que tinha mais valor emocional pela ligação ao filho que perdera.
“Há sempre pessoas que tem cerâmicas em casa partida e não querem”, sublinha, recordando ainda uma história mais engraçada, em Barcelona. “Uma jovem levou um cão de porcelana gigante. Estava partido, mas parecia que tínhamos um animal de estimação entre nós.”
Quanto ao tempo do processo, irá sempre depender da quantidade de cacos. Se tiver três fragmentos, por exemplo, pode demorar cerca de meia hora a ficar concluído. “Ensino as pessoas a restaurar com a técnica moderna, porque é o mais simples numa fase inicial.”
Em outubro, lançou os kits de kintsugi para quem se quer dedicar a este ofício em casa. Existem duas opções à venda online — para iniciantes ou avançados — com tudo o que é necessário, incluindo um manual que inclui todos os passos, as regras e as imagens a ilustrar o processo. “É preciso ter muita paciência”, mas todos conseguem aprender.
“Recebia muitas perguntas sobre onde se podem comprar os materiais necessários, mas não existia nenhuma loja que reunisse todos”, explica. “Como forma de facilitar o processo, comecei a fazer estes kits durante a Cidade do Zero [um evento de sustentabilidade], porque tinha uma lista de espera com 60 pessoas. Fi-los a pensar em quem não conseguiu ir.”
A verdade é que, desde então, o feedback não podia estar a ser mais positivo. Filipa tem-se dedicado a workshops em zonas como Braga, Porto e Lisboa, mas a maioria dos conjuntos têm sido enviados para o interior do País.
Apesar do foco no restauro com kintsugi, Filipa quer explorar outras técnicas, com agrafos ou preenchimento de lacunas. “O meu objetivo é expandir as temáticas de reutilização de cerâmica e criar outro tipo de objetos. Talvez menos utilitários e mais decorativos.”
Com várias ideias para 2025 e muitas oficinas marcadas, a missão continua a ser a mesma desde o primeiro dia. “O resultado tem de ter um impacto emocional e ambiental”, conclui. “É importar-me continuar a expressar-me, mas de forma responsável. Nunca quis fazer objetos que fossem descartados.”
Pode inscrever-se nos workshops disponíveis através do site da Junta Cacos. Os preços variam entre os 35 e os 75€ dependendo da organização.
Carregue na galeria para ver algumas das peças criadas por Filipa.