Quando Marta olha através das enormes janelas da casa de férias onde decide terminar a sua vida, os vidros são transparentes como se de cristal se tratasse. Nestas cenas, os olhos da personagem interpretada por Tilda Swinton parecem refletir a envolvente, com os tons de verde a serem, ironicamente, um sinónimo de vida e de saúde.
Ao longo de “O Quarto ao Lado”, o primeiro filme em inglês do realizador Pedro Almodóvar, que conquistou o Leão de Ouro no Festival de Veneza em 2024, a arquitetura acompanha a protagonista e a amiga, Ingrid, interpretada por Julianne Moore, tendo um papel importante na relação entre as duas.
Há, por isso, uma terceira protagonista na longa-metragem. Falamos da Casa Szoke, a moradia brutalista que serve de plano de fundo para grande parte do filme. Projetada pelo atelier espanhol Aranguren + Gallegos, a construção fica, na verdade, na encosta sul do Monte Abantos, perto de San Lorenzo de El Escorial, a uma hora de Madrid, em Espanha.
Inspirada nas criações do arquiteto franco-suíço Le Corbusier, a mansão foi construída entre 2018 e 2020. É formada por uma série de volumes angulares, interligados em vidro e aço Corten, reforçando a intenção de se fundir a arquitetura e a envolvente, aninhando-a construção no pinhal que a rodeia.
“O fio condutor [na criação do cenário] é o interesse do Pedro [Almodóvar] por uma estética mais elevada”, explicou a designer da produção, Inbal Weinber, à revista “Wallpaper”. “Tem um sentido inato de beleza e um apreço específico por arte, algo que é visível em cada plano.”
Por se tratar de um terreno íngreme, construiu-se uma pequena escala se que confunde com a paisagem, sobretudo na parte superior do lote. Para isto contribui a textura e a cor, um tom enferrujado, camuflado entre o granito escurecido e os tons avermelhados dos pinheiros.
A casa varia entre uma altura única do primeiro volume, junto à floresta, e duas alturas no extremo sul. À medida que se sobe, a arquitetura torna-se mais expressiva, sobretudo em frente à superfície da piscina. Em cada nível, há grandes aberturas para a vista desafogada.
Orientada para nordeste, a moradia conta ainda com um grande pórtico com a abertura sobre as cúpulas do mosteiro San Lorenzo de El Escorial, um palácio real do século XVI que é Património Mundial da UNESCO desde 1984. Há ainda vista para o Bosque de La Herrería, a sudoeste.
O papel da arquitetura no filme
Na produção, Swinton contracena com Julianne Moore. Ambas interpretam jornalistas que foram grandes amigas na juventude, quando trabalharam juntas na mesma revista. No entanto, não mantiveram contacto e passaram anos sem se reencontrarem. Ingrid tornou-se escritora de ficção, enquanto Martha foi correspondente de guerra.
Quando descobre que tem uma doença terminal, Martha aproxima-se novamente da amiga e da filha que desprezou para privilegiar o trabalho. É quando surge o pedido de que a antiga colega esteja com ela, no quarto ao lado, no momento em que terminar a sua vida nesta casa isolada.
A mudança para a Szoke marca uma alteração na relação entre as duas mulheres, que ganham uma nova intimidade. “Ficámos surpreendidos com a sensibilidade [de Almodóvar] às intenções e intuições espaciais da nossa arquitetura. A relação dual e íntima das protagonistas, com situações dramáticas e quase uma cisão e fusão de personalidades e emoções, é magistralmente tratada”, confessam os arquitetos ao site “Archilovers”.
“Há algo nas casas modernistas que irradia calma, racionalidade, simplicidade e apreço pelo ambiente. Especificamente no nosso filme, a ideia do espaço como um último descanso, um local para a doença e para a cura, está ligada à sensibilidade modernista”, acrescenta, por sua vez, Weinber à “Wallpaper”.
Os duplos reflexos criados nas janelas das divisões da casa, refletem, por sua vez, a natureza e a intimidade vivida nas divisões interiores se fundem. A equipa por trás da produção sentiu-se também cativada pela justaposição de planos lineares e das curvas da natureza.
“O Pedro [Almodóvar] trouxe o seu gosto pessoal”
A contrastar com a parte de fora, o interior assume tons mais quentes com paredes revestidas de carvalho. As matérias-primas foram escolhidas para as divisões comunicarem com a natureza de forma mais abstrata.
O nível principal é dividido pelo acesso à casa em duas áreas. A área de dormir fica à esquerda, enquanto a cozinha, a área da sala de jantar e a biblioteca privada ficam à direita, fazendo deste último o volume mais alto e o espaço com as melhores vistas de qualquer parte da casa.
Já na área mais baixa da construção, foi colocado um escritório, uma sala de jogos, uma oficina, um quarto principal para hóspedes, uma lavandaria, arrumos e uma despensa.
Quanto à decoração, houve dedo do realizador. “Tínhamos um mood board rico em referências, desde casas de pessoas reais que conhecemos em Nova Iorque a peças de designers acabadas de sair das últimas revistas de design”, continua. “O Pedro deu sempre o seu gosto pessoal (e artefactos) como toque final.”
Um dos objetos mais notáveis é o quadro “People in the Sun”, uma criação de 1963 do pintor Edward Hopper. A referência surge em vários momentos da longa-metragem com Martha a surgir deitada numa espreguiçadeira ao sol, dividida entre o interior da casa e a procura pela luz do exterior.
Outros projetos de Pedro Almodóvar são conhecidos por terem cores vibrantes nos interiores, como o vermelho e o laranja, que representam paixão e sensualidade. Em “O Quarto ao Lado”, o encarnado surge em vários momentos como uma representação do limiar entre a vida e a morte.
A tonalidade está presente não apenas em pequenos objetos, mas também na porta vermelha do quarto da protagonista. Se estiver fechada, significa que a personagem está morta. Ingrid dorme no andar de baixo e tem de subir a escada todos os dias com o pavor de descobrir se Martha tomou a sua decisão.
“Acreditamos que a casa foi capaz de acompanhar e complementar as intenções e escolhas de Pedro Almodóvar”, concluem os arquitetos. “A arquitetura faz sentido quando acolhe e enriquece a pessoa que a habita. Digamos que foi talvez o enquadramento que emoldura o verdadeiro protagonista, a obra de arte, o filme, do qual é o pano de fundo.”
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